Boletins da cidade dos rios sufocados 6
Nestes dias em que vivemos, o surrealismo terrível se auto-engole, digere, defeca, torna a ingerir, continuando e continuando esse ciclo incestuoso de transformar absurdos em normalidade e não descansar dos dogmas mais estúpidos, gerando um monstro que assusta um monstro.
E eu tenho que ver vítimas esfoladas e parentes de vítimas esfoladas sorrindo com a boca amarela, pra baixo, e dizendo com a alma sem dentes “eu acredito que os meus filhos verão um país mais justo”. Tenho vontade de mastigar a televisão quando vejo uma coisa dessas, dou saltos pela sala, gritando como?, mas comooo?.
Eu sou cheia de momentos, pois é. Esse é um dos meus momentos “ser ingênuo” enfrentando o mundo. A mesma cena num momento cínico, que é o em voga no momento, dou umas três tragadinhas rápidas no cigarro, com um olho meio fechado, e gargalho como se fosse bonito ver alguém comer vidro.
E ainda penso “boa era a época em que a gente só comia merda”.
Hoje em dia a gente engole de tudo. Como hoje, o dia de hoje.
Com a mudança de horário, acordei uma hora mais cedo do que o necessário.Uma hora a menos de sono, uma hora a mais de dúvidas. Levantei, disposta, saí de casa ouvindo the cure, nunca se sabe qual a previsão do tempo aqui, protetor solar e guarda chuva, ratos, putas na padaria, policia montada, não encontrei a academia de defesa pessoal, olhei as pessoas e vi carnes que não se gostam, comprei um café com leite, “bem medido” gritou o turco pra garçonete, nem uma gota a mais ele quis dizer com isso, cheguei no trabalho, décimo primeiro andar, minha sala é sem janelas, duas luzes brancas, quatro paredes cor de creme, ar condicionado central psicopata, ou nos congela ou nos frita, sempre o mesmo ar requentado, me debati em burocracia, enterrei e desenterrei papéis, tomei café, pensei no blue brain, o blue brain pensou em mim, dei telefonemas, garanti pretensas ordens, repeti ofícios, cumprimentei, dei tchau, almocei, olhei as pessoas e vi nuvens de pontinhos que brincam de se odiar e se amar, pelo correio enviei um rosário para minha antiga benzedeira (pela minha sanidade ahahahaha), voltei no horário, recebi elogios (jamais muito efusivos), dei explicações, corrigi ofícios, me arrependi de ter levado esse trabalho tão longe, fui a sala da minha chefe (tem janelas, percebi que estava chovendo), respondi a perguntas inúteis sobre mim, declinei a sugestão-convite- pressão de seguir a escola de direito, voltei para a minha mesa, solicitei que os armários fossem trocados de lugar, pedi café, fiz cócegas imaginárias no blue brain, ele espirrou em mim, fiquei ouvindo smashing pumpkins num fone de ouvido só enquanto corrigia números. fui no andar de cima tirar xérox, troquei confissões numa sala e abafei uma fofoca na outra, porque faz parte do emprego, assinei errado o ponto de ontem, dividi um cigarro (o “fumadouro” tem janela, percebi que o céu entardecia azul), voltei pra minha sala, conferi minha conta não lá grande coisa, odiei todas as minhas escolhas até aqui, tive mais certeza ainda de que eu não poderia ter sido nenhuma outra pessoa do que tudo o que me aconteceu até aqui. Tudo o que me acontece. Saí já era de noitinha. Profundamente azul. E a minha cabeça explodindo de possibilidades e incapacidades. As vezes, eu penso que já tive muitas cabeças em alguma das minhas vidas, e nessa aqui, experimento uma sensação de membro amputado fantasma.
Estão todas as cabeças o tempo inteiro ao meu redor.
O difícil é saber se a minha coluna vertebral pode suportar.
Mas eu sou curiosa, e ainda não tenho um plano melhor do que continuar seguindo.
A gata, quando não dorme, faz acrobacias birutas pela casa. Gosto de pensar que ela é feliz assim.
Monday, February 26
Friday, February 23
boletins da cidade dos rios sufocados 5
eu sou um tipo de cachorro maldito que só compreende ordens cruelmente assinaladas
e ao mesmo tempo odeia ser mandado.
eu sou um tipo de cachorro maldito que só sabe ser gato. a gata, aliás, se parece cada dia mais com uma raposa. minha adorada e odiada raposinha branca.
a frase do dia é "quer que eu te bata com o universo?",
ou como tem dito o slogan do filme do cavaleiro fantasma, eu usarei minha maldição contra você. esse"você", dito seja, é uma entidade não identificável. o que não significa nem um pouco que Ela não exista.
veja bem, nós poderíamos existir sem Ela. mas só continuamos existindo até aqui por que Ela permitiu. as fraquezas, vcs sabem, são inventadas como marcas de chiclete.
todos os tipos de guloseimas.
mas ser forte e insistente compensa. talvez me mate, mas sempre compensará.
e depois, a alergia no corpo e as feridas nos pés já começam a sarar. eu faria de novo pelo dobro do preço.
há seis dias atrás, era carnaval.
não era grande coisa enquanto conjectura, mas eu pensei, de repente, que se eu "enxergo" mais do que “usualmente as pessoas praticam”, se eu percebo mais,
se a minha pele é capaz de sentir o que eu não conheço,
talvez, eu também possa aprender a ver.
ver, é quando voce tem consciência.
é quando voce aprende a compartilhar e convocar a realidade paralela.
ou seja, eu desejei ver, suspeitei que fosse possível, intui como começar
E acreditei que talvez por algum motivo eu esteja na cidade certa para começar a brincar disso.
só podia ser num deserto.
não é sempre num lugar onde vazios imperam que as coisas acontecem?
um vazio com cavalos dágua sem nome enterrados. um vazio que não sabe fazer noite, onde todas as putas são velhas e todas as travestis de primeira linha.
uma cidade que tem todas as igrejas com todos os tipos de vendilhões,
por onde o futuro passou brevemente e deixou pra trás.
Aqui, o futuro passou uma noite, trocou almas por promissórias de desejos, fez muitas contas, deixou muitas histórias mal contadas e visões distorcidas, e foi embora na manhã seguinte roubando todos os cinzeiros e fotos de infância.
No deserto, onde pra sobreviver voce acha beleza no que estiver ao alcance.
Pro bom e pro ruim.
De cada um. E fodendo com todos.
Há seis dias atrás, sentada na sala, olhei pra fora, escolhi uma janela qualquer, uma lá longe, no topo de um prédio que tem um terraço bonito pra pandorgas,
se ainda existisse uma,
e me apoderei da idéia daquele cômodo.
Consegui me concentrar porque era dia propício, varri rápido todos os outros pensamentos da minha cabeça, então os meus olhos já não piscavam nem por dentro nem por fora.
Ainda não sei como funciona, mas sei que desliguei a luz do quarto de um tetraplégico sem nunca ter estado lá.
Pode ser só fantasia e então eu sou a filha predileta do acaso.
O importante veio depois.
Quando eu era adolescente, batia punheta pensando em nada. No vazio. Sem nenhuma fantasia, nem lobo mau, nem chapeuzinho nem caçador encantado.
Eu vivo sozinha,
gosto de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra as vezes.
Os vazios me compreendem. E eu entendo o que eles dizem.
Assim, em posse de todas as coordenadas concentradas no ponto do vazio,
como quem desiste de procurar uma essência e simplesmente se liberta de tudo,
tudo, o que nos constitui, nos segura, nos prende, eu tive.
O sonho dourado de qualquer iogue ou físico quântico. Eu vi a dança.
Eu percebi a dança.
Eu dancei o caos da menor partícula, a mais estúpida ínfima base de toda a energia,
A informação protegida,
A percepção pura dessa coisinha infinitamente minuscula que criou o tempo, o tamanho, todas as grandezas e pequinices, o fundo do que existe,
de ti em mim no porco no prazo na função nas esferas no que vai vir porque o que foi já foi.
Não tem mais como voltar do que eu vi.
Acho que algumas vezes eu tive uma certa esperança medíocre de que o momento de me tornar livre sem volta não viria. Que eu o deixaria passar. Mas não.
Eu fui atrás e da pior melhor maneira. Espiando sem ser convidada.
Enfim, no dia seguinte, acordei com alergia no corpo inteiro. Mais forte no couro cabeludo, e eu cocei com muito prazer.
Uma ferida no pé direito, e duas no pé esquerdo.
Mas acho que ninguém espia a matéria de graça.
Paguei moedas a três mendigos pra honrar pretos velhos e barqueiros.
As marcas estão sarando. E então eu vou de novo.
eu sou um tipo de cachorro maldito que só compreende ordens cruelmente assinaladas
e ao mesmo tempo odeia ser mandado.
eu sou um tipo de cachorro maldito que só sabe ser gato. a gata, aliás, se parece cada dia mais com uma raposa. minha adorada e odiada raposinha branca.
a frase do dia é "quer que eu te bata com o universo?",
ou como tem dito o slogan do filme do cavaleiro fantasma, eu usarei minha maldição contra você. esse"você", dito seja, é uma entidade não identificável. o que não significa nem um pouco que Ela não exista.
veja bem, nós poderíamos existir sem Ela. mas só continuamos existindo até aqui por que Ela permitiu. as fraquezas, vcs sabem, são inventadas como marcas de chiclete.
todos os tipos de guloseimas.
mas ser forte e insistente compensa. talvez me mate, mas sempre compensará.
e depois, a alergia no corpo e as feridas nos pés já começam a sarar. eu faria de novo pelo dobro do preço.
há seis dias atrás, era carnaval.
não era grande coisa enquanto conjectura, mas eu pensei, de repente, que se eu "enxergo" mais do que “usualmente as pessoas praticam”, se eu percebo mais,
se a minha pele é capaz de sentir o que eu não conheço,
talvez, eu também possa aprender a ver.
ver, é quando voce tem consciência.
é quando voce aprende a compartilhar e convocar a realidade paralela.
ou seja, eu desejei ver, suspeitei que fosse possível, intui como começar
E acreditei que talvez por algum motivo eu esteja na cidade certa para começar a brincar disso.
só podia ser num deserto.
não é sempre num lugar onde vazios imperam que as coisas acontecem?
um vazio com cavalos dágua sem nome enterrados. um vazio que não sabe fazer noite, onde todas as putas são velhas e todas as travestis de primeira linha.
uma cidade que tem todas as igrejas com todos os tipos de vendilhões,
por onde o futuro passou brevemente e deixou pra trás.
Aqui, o futuro passou uma noite, trocou almas por promissórias de desejos, fez muitas contas, deixou muitas histórias mal contadas e visões distorcidas, e foi embora na manhã seguinte roubando todos os cinzeiros e fotos de infância.
No deserto, onde pra sobreviver voce acha beleza no que estiver ao alcance.
Pro bom e pro ruim.
De cada um. E fodendo com todos.
Há seis dias atrás, sentada na sala, olhei pra fora, escolhi uma janela qualquer, uma lá longe, no topo de um prédio que tem um terraço bonito pra pandorgas,
se ainda existisse uma,
e me apoderei da idéia daquele cômodo.
Consegui me concentrar porque era dia propício, varri rápido todos os outros pensamentos da minha cabeça, então os meus olhos já não piscavam nem por dentro nem por fora.
Ainda não sei como funciona, mas sei que desliguei a luz do quarto de um tetraplégico sem nunca ter estado lá.
Pode ser só fantasia e então eu sou a filha predileta do acaso.
O importante veio depois.
Quando eu era adolescente, batia punheta pensando em nada. No vazio. Sem nenhuma fantasia, nem lobo mau, nem chapeuzinho nem caçador encantado.
Eu vivo sozinha,
gosto de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra as vezes.
Os vazios me compreendem. E eu entendo o que eles dizem.
Assim, em posse de todas as coordenadas concentradas no ponto do vazio,
como quem desiste de procurar uma essência e simplesmente se liberta de tudo,
tudo, o que nos constitui, nos segura, nos prende, eu tive.
O sonho dourado de qualquer iogue ou físico quântico. Eu vi a dança.
Eu percebi a dança.
Eu dancei o caos da menor partícula, a mais estúpida ínfima base de toda a energia,
A informação protegida,
A percepção pura dessa coisinha infinitamente minuscula que criou o tempo, o tamanho, todas as grandezas e pequinices, o fundo do que existe,
de ti em mim no porco no prazo na função nas esferas no que vai vir porque o que foi já foi.
Não tem mais como voltar do que eu vi.
Acho que algumas vezes eu tive uma certa esperança medíocre de que o momento de me tornar livre sem volta não viria. Que eu o deixaria passar. Mas não.
Eu fui atrás e da pior melhor maneira. Espiando sem ser convidada.
Enfim, no dia seguinte, acordei com alergia no corpo inteiro. Mais forte no couro cabeludo, e eu cocei com muito prazer.
Uma ferida no pé direito, e duas no pé esquerdo.
Mas acho que ninguém espia a matéria de graça.
Paguei moedas a três mendigos pra honrar pretos velhos e barqueiros.
As marcas estão sarando. E então eu vou de novo.
Monday, February 12
Boletins da cidade dos rios sufocados iv
A gata ronrona no meu colo, doce e possessiva, o que quer dizer que morde com força e alegria. Eu passei sete dias longe. E foi como se não tivesse; sair daqui ficou mais fraco do que era antes. As cidades pras quais retornei, onde apesar de tudo eu guardava a fantasia de pequenos cinco minutos de genuína e despretenciosa liberdade, mesmo que forçada, esses lugares, em poucos meses, também vão sendo sitiados. De dentro pra fora. Numa das cidades,meus amigos gays não saem mais de casa porque os skinheads voltaram a atacar, dessa vez sabendo menos ainda quem eles são e quem eles odeiam. Só uma questão de escorrer a revolta dos punhos na cara de alguém. Eles estão também na cidade dos rios sufocados e em santiago do chile. Na outra cidade em que eu estive quase fui presa, por causa de um puto baseadinho. E algum filha da puta que caminhando pelo parque, por falta do que fazer, nos denunciou. Eu já tinha me esquecido que isso podia acontecer lá. 3 viaturas, eles eram em 10, com muitas armas e nós éramos 3, a essa altura com um cigarro na mão. Isso é constitucional? Isso me dá alguma segurança? Depois da humilhação e da agressão, nos safamos. Mas eu percebi quem foi. E depois de muito tempo sem fazer isso, praguejei. Não faço muito porque eu sei o que acaba acontecendo quando brinco disso, e acho crueldade. Mas aquele desgraçado vai perder as bolas pros dentes do seu labrador. Às vezes, pra estar vivo, é preciso se vingar com o ódio de quem defende um ponto de vista que pode mudar o mundo. Vá cuidar da sua vida é um desses. No entanto, o que importa mesmo, é que cada vez mais, todos nós somos reconhecidos como inimigos. Cada vez mais “geni”, mais apontados, identificados, as placas dos nossos carros são anotadas quando paramos na beira da estrada pra olhar a porra da paisagem. Porque ninguém mais faz isso. Porque é muito estranho se conceder, relaxar, se derramar, existir com a carne e todos os desejos e marcas que esses tempos tem deixado.
O “sugerido” é a assepsia existencial.
Eu não posso dar colo pra gata enquanto escrevo isso, mesmo que ela não leia, finjo de proteger alguém do que eu sei. Justo ela, justo ela que é até capaz de me contar.
Nessa cidade em que quase fui presa, como no resto do estado, os policiais agora tem metas de revistas (e por suposto apreensões), você acha que falta muito pra oferecerem dinheiro pela cabeça que pensar?
É só um programa de produção em massa capitalista falido aplicado ao vigiar e punir, mas não me chame de óbvia. Óbvia é essa nossa impotência de quem sabe demais, e pra resistir, só nos sobrou existir.
Conseguir sobreviver e existir ao máximo.
Como uma personagem tão fatal que nem um russo de avó alemã seria capaz de criar, eu sei que nada mais pode ser mudado, revertido. Ainda assim o que me sobra é insistir nessa insurreição, nessa revolta de restar, estar aqui, o máximo possível. Me infiltrando, me quebrando e colando cacos, conspirando e mantendo a minha cota de inocência, mesmo que doa mais assim. Sabendo que o ar vai acabar, aproveitando cada tragada.
E na contra corrente de tudo, ficando mais forte.
Os rios estão correndo mais devagar no mundo inteiro.
Por isso que apartir de agora a chuva matará mais.
A gata ronrona no meu colo, doce e possessiva, o que quer dizer que morde com força e alegria. Eu passei sete dias longe. E foi como se não tivesse; sair daqui ficou mais fraco do que era antes. As cidades pras quais retornei, onde apesar de tudo eu guardava a fantasia de pequenos cinco minutos de genuína e despretenciosa liberdade, mesmo que forçada, esses lugares, em poucos meses, também vão sendo sitiados. De dentro pra fora. Numa das cidades,meus amigos gays não saem mais de casa porque os skinheads voltaram a atacar, dessa vez sabendo menos ainda quem eles são e quem eles odeiam. Só uma questão de escorrer a revolta dos punhos na cara de alguém. Eles estão também na cidade dos rios sufocados e em santiago do chile. Na outra cidade em que eu estive quase fui presa, por causa de um puto baseadinho. E algum filha da puta que caminhando pelo parque, por falta do que fazer, nos denunciou. Eu já tinha me esquecido que isso podia acontecer lá. 3 viaturas, eles eram em 10, com muitas armas e nós éramos 3, a essa altura com um cigarro na mão. Isso é constitucional? Isso me dá alguma segurança? Depois da humilhação e da agressão, nos safamos. Mas eu percebi quem foi. E depois de muito tempo sem fazer isso, praguejei. Não faço muito porque eu sei o que acaba acontecendo quando brinco disso, e acho crueldade. Mas aquele desgraçado vai perder as bolas pros dentes do seu labrador. Às vezes, pra estar vivo, é preciso se vingar com o ódio de quem defende um ponto de vista que pode mudar o mundo. Vá cuidar da sua vida é um desses. No entanto, o que importa mesmo, é que cada vez mais, todos nós somos reconhecidos como inimigos. Cada vez mais “geni”, mais apontados, identificados, as placas dos nossos carros são anotadas quando paramos na beira da estrada pra olhar a porra da paisagem. Porque ninguém mais faz isso. Porque é muito estranho se conceder, relaxar, se derramar, existir com a carne e todos os desejos e marcas que esses tempos tem deixado.
O “sugerido” é a assepsia existencial.
Eu não posso dar colo pra gata enquanto escrevo isso, mesmo que ela não leia, finjo de proteger alguém do que eu sei. Justo ela, justo ela que é até capaz de me contar.
Nessa cidade em que quase fui presa, como no resto do estado, os policiais agora tem metas de revistas (e por suposto apreensões), você acha que falta muito pra oferecerem dinheiro pela cabeça que pensar?
É só um programa de produção em massa capitalista falido aplicado ao vigiar e punir, mas não me chame de óbvia. Óbvia é essa nossa impotência de quem sabe demais, e pra resistir, só nos sobrou existir.
Conseguir sobreviver e existir ao máximo.
Como uma personagem tão fatal que nem um russo de avó alemã seria capaz de criar, eu sei que nada mais pode ser mudado, revertido. Ainda assim o que me sobra é insistir nessa insurreição, nessa revolta de restar, estar aqui, o máximo possível. Me infiltrando, me quebrando e colando cacos, conspirando e mantendo a minha cota de inocência, mesmo que doa mais assim. Sabendo que o ar vai acabar, aproveitando cada tragada.
E na contra corrente de tudo, ficando mais forte.
Os rios estão correndo mais devagar no mundo inteiro.
Por isso que apartir de agora a chuva matará mais.
Sunday, February 4
Boletins da cidade dos rios sufocados 3
A gata saiu do cio e eu voltei a ser espancada por ela pelo menos uma vez por dia e uma vez por noite. Fora isso, voltaram os giros enlouquecidos pela casa com as unhas em riste. E as funções de gaveta. De uns meses pra cá, todas as gavetas que ficam mais ou menos ao seu alcance são abertas e os seus conteúdos esvaziados. Me pergunto se ela está procurando ou escondendo alguma coisa. Ou talvez perseguindo. Desde criança acredito que existam por exemplo seres que vivam especificamente em degraus de escadas de madeira. Mas isso é praticamente um hobbie besta mantido como alimento de nostalgia.
Eu estou numa tpm que dura 3 dias como se fosse um deserto que vai me sufocar. Não me importo tanto com o inchaço, nem com a fome, nem com os peitos que doem, isso tudo que se foda. Meus hormônios, desequilibrados. Minhas visões se descomprometem. Se desamarram. Eu fico mais do que sensível. As vezes na verdade, eu fico até gelada. Durante esses dias, eu sinto, penso, existo, exerço pedaços especiais de todas e quaisquer existências randômicas ao redor o tempo inteiro. A freqüência é tanta e tão intensa, como fotografias passando rápidas para formar um filme, eu também não percebo, não tenho acesso aos quadros isolados. Fica só a sensação constante de confusão, de que eu, durante esses dias não consigo agir pra mim e por mim, fico existindo como uma passagem. Talvez seja isso mesmo e esses dias são como o imposto de renda, uma espécie de regra feudal; nesse período me vejo obrigada a transferir energias, do nada pro nada, uma ponte sem sentido. Quem sabe. Eu não sei. É até uma vergonha perceber e assumir o quão pouco eu sei sobre o que acontece comigo e em mim. Mas talvez isso só aconteça comigo por essa minha condição, digamos meio “eventualmente imbecil” frente a vida.
Isso e porque apesar de curiosa, eu sei que tem coisas que não vale a pena perguntar, querer saber.
As vezes não tomo banho todos os dias, hoje preciso, já fazem 3. Hoje eu quero. Eu sempre quero. Mas não ser a pessoa mais perfumada do mundo é uma ótima contribuição pra segurança urbana quando o centro fica vazio. “O centro”. “Os centros” são sempre lugares fodidos nos fins de semana. Pois é, estamos naquele ponto em que qualquer coisa tah valendo a pena pra uma mulher se proteger a noite, mas ainda não tão selvagem que os predadores não tenham cheiros de preferência. Se é que você me entende.
Preciso regar as solas dos meus pés, estão muito secas, essa semana aparei um pouco as arestas, as crostas, os rachados. Meus pés são minha metáfora. Disse a podóloga “aaaaaa, eles ficam assim cascudos, com calos e grossos porque a pele é muito sensível, literalmente seu pé ,ao andar, machuca”. E eu pensei torcendo o nariz “humpf, as vezes odeio um pouco a falta de comoção com que as pessoas simplórias entregam-nos as verdades”. Odeio o tempo inteiro o meu pedantismo. Mas tanto ele quanto o ódio fazem parte de todo o intrincado mecanismo crosta-protetor que eu tenho em torno de mim. Meus “calos existenciais” porque literalmente, viver, em mim, machuca. Eu não ligo, mas me cuido bastante. Até porque viver, assim como andar, é um troço que “apesar de tudo” eu gosto.
Porque eu gosto tanto tenho que viver pela metade.
De tão frágil fico dura.
Enigma binário ordinário. Me sinto uma prima mística do DOS.
Bom. Fora isso, na última semana o mundo começou a brincar seriamente com a idéia do fim. Vai ser o tempo de nos acostumarmos gradativamente com a catástrofe e a paranóia que não sentiremos dor verdadeira quando acabar. Parecerá só um por do sol um pouco mais esquisito do que os outros.
Há, nesse instante, sobre o nosso universo, na dimensão imediatamente seguinte, uma espinha de peixe cercada de estrelas, com dragões de todas as dinastias mastigando seus pescoços metálicos. Mas isso tem milhares maneiras de se contar.
A gata saiu do cio e eu voltei a ser espancada por ela pelo menos uma vez por dia e uma vez por noite. Fora isso, voltaram os giros enlouquecidos pela casa com as unhas em riste. E as funções de gaveta. De uns meses pra cá, todas as gavetas que ficam mais ou menos ao seu alcance são abertas e os seus conteúdos esvaziados. Me pergunto se ela está procurando ou escondendo alguma coisa. Ou talvez perseguindo. Desde criança acredito que existam por exemplo seres que vivam especificamente em degraus de escadas de madeira. Mas isso é praticamente um hobbie besta mantido como alimento de nostalgia.
Eu estou numa tpm que dura 3 dias como se fosse um deserto que vai me sufocar. Não me importo tanto com o inchaço, nem com a fome, nem com os peitos que doem, isso tudo que se foda. Meus hormônios, desequilibrados. Minhas visões se descomprometem. Se desamarram. Eu fico mais do que sensível. As vezes na verdade, eu fico até gelada. Durante esses dias, eu sinto, penso, existo, exerço pedaços especiais de todas e quaisquer existências randômicas ao redor o tempo inteiro. A freqüência é tanta e tão intensa, como fotografias passando rápidas para formar um filme, eu também não percebo, não tenho acesso aos quadros isolados. Fica só a sensação constante de confusão, de que eu, durante esses dias não consigo agir pra mim e por mim, fico existindo como uma passagem. Talvez seja isso mesmo e esses dias são como o imposto de renda, uma espécie de regra feudal; nesse período me vejo obrigada a transferir energias, do nada pro nada, uma ponte sem sentido. Quem sabe. Eu não sei. É até uma vergonha perceber e assumir o quão pouco eu sei sobre o que acontece comigo e em mim. Mas talvez isso só aconteça comigo por essa minha condição, digamos meio “eventualmente imbecil” frente a vida.
Isso e porque apesar de curiosa, eu sei que tem coisas que não vale a pena perguntar, querer saber.
As vezes não tomo banho todos os dias, hoje preciso, já fazem 3. Hoje eu quero. Eu sempre quero. Mas não ser a pessoa mais perfumada do mundo é uma ótima contribuição pra segurança urbana quando o centro fica vazio. “O centro”. “Os centros” são sempre lugares fodidos nos fins de semana. Pois é, estamos naquele ponto em que qualquer coisa tah valendo a pena pra uma mulher se proteger a noite, mas ainda não tão selvagem que os predadores não tenham cheiros de preferência. Se é que você me entende.
Preciso regar as solas dos meus pés, estão muito secas, essa semana aparei um pouco as arestas, as crostas, os rachados. Meus pés são minha metáfora. Disse a podóloga “aaaaaa, eles ficam assim cascudos, com calos e grossos porque a pele é muito sensível, literalmente seu pé ,ao andar, machuca”. E eu pensei torcendo o nariz “humpf, as vezes odeio um pouco a falta de comoção com que as pessoas simplórias entregam-nos as verdades”. Odeio o tempo inteiro o meu pedantismo. Mas tanto ele quanto o ódio fazem parte de todo o intrincado mecanismo crosta-protetor que eu tenho em torno de mim. Meus “calos existenciais” porque literalmente, viver, em mim, machuca. Eu não ligo, mas me cuido bastante. Até porque viver, assim como andar, é um troço que “apesar de tudo” eu gosto.
Porque eu gosto tanto tenho que viver pela metade.
De tão frágil fico dura.
Enigma binário ordinário. Me sinto uma prima mística do DOS.
Bom. Fora isso, na última semana o mundo começou a brincar seriamente com a idéia do fim. Vai ser o tempo de nos acostumarmos gradativamente com a catástrofe e a paranóia que não sentiremos dor verdadeira quando acabar. Parecerá só um por do sol um pouco mais esquisito do que os outros.
Há, nesse instante, sobre o nosso universo, na dimensão imediatamente seguinte, uma espinha de peixe cercada de estrelas, com dragões de todas as dinastias mastigando seus pescoços metálicos. Mas isso tem milhares maneiras de se contar.
Thursday, February 1
boletins da cidade dos rios sufocados 2
Descobri que alguma coisa vai mal com a minha tireóide. A gata vai bem obrigada, no cio, que é quando ela fica manhosa e finge que não é mais agressiva. O dia amanheceu nublado, depois fez muito sol e calor, no final da tarde choveu muito, agora, como é madrugada, o céu é bordô. Aqui de madrugada o céu é sempre bordô. Às vezes eu penso que todo o recalque é uma tentativa frustrada de conter, comportar, tentar controlar toda a torrente de desejos e absurdos que ter sempre uma madrugada bordô causa no estômago daqui. E “quem és tus”?
Mas dá pra ver nos olhos das putas velhas nas praças.
Dá pra perceber nas coisas que você jamais faria em qualquer outro lugar do mundo.
A gente se lembra disso quando o sol bate na pele como se fosse o deserto.
E nos protegemos depressa lembrando que aqui é a cidade da chuva.
Eu vim pra cá pra ver chover.
Nas últimas semanas os jornais da cidade vieram com mensagens “revolucionárias retro-futuristas”, como “o fim do mito da cidade do futuro” ou “turistas questionam as questões sociais da cidade”.
Está chegando, eu sei.
A cada lugar seu momento.
E cada pessoa é um lugar.
Se eu não estivesse tão interessada nos fogos de artifício, poderia parecer um corvo que sempre persegue o caos. Mas esta cidade de rios sufocados tem as melhores nuvens do mundo. Isso pra mim significa o suficiente, se é que vocês entendem de volatilidade.
Da janela da sala eu sempre vejo numa vitrine, uma manequim sem cabeça iluminado.
O que isso pode fazer em mim?
Todas as coisas me causam o tempo inteiro.
Eu vim do mesmo lugar que você que não presta atenção.
A diferença é que eu não conseguir desligar a chave. E depois de um tempo, parei de tentar.
Todo aquele que assiste o noticiário inteiro sem se sentir mal acredita estar imunizado.
Alguma coisa na minha tireóide não vai bem.
Só mais um desses efeitos de estar neste mundo agora.
Me preocupo com a mesma desatenção ordinariamente paranóica com que vejo o mundo despencar.
Sozinhos num quarto de hotel estranho somos todos tão iguais.
Descobri que alguma coisa vai mal com a minha tireóide. A gata vai bem obrigada, no cio, que é quando ela fica manhosa e finge que não é mais agressiva. O dia amanheceu nublado, depois fez muito sol e calor, no final da tarde choveu muito, agora, como é madrugada, o céu é bordô. Aqui de madrugada o céu é sempre bordô. Às vezes eu penso que todo o recalque é uma tentativa frustrada de conter, comportar, tentar controlar toda a torrente de desejos e absurdos que ter sempre uma madrugada bordô causa no estômago daqui. E “quem és tus”?
Mas dá pra ver nos olhos das putas velhas nas praças.
Dá pra perceber nas coisas que você jamais faria em qualquer outro lugar do mundo.
A gente se lembra disso quando o sol bate na pele como se fosse o deserto.
E nos protegemos depressa lembrando que aqui é a cidade da chuva.
Eu vim pra cá pra ver chover.
Nas últimas semanas os jornais da cidade vieram com mensagens “revolucionárias retro-futuristas”, como “o fim do mito da cidade do futuro” ou “turistas questionam as questões sociais da cidade”.
Está chegando, eu sei.
A cada lugar seu momento.
E cada pessoa é um lugar.
Se eu não estivesse tão interessada nos fogos de artifício, poderia parecer um corvo que sempre persegue o caos. Mas esta cidade de rios sufocados tem as melhores nuvens do mundo. Isso pra mim significa o suficiente, se é que vocês entendem de volatilidade.
Da janela da sala eu sempre vejo numa vitrine, uma manequim sem cabeça iluminado.
O que isso pode fazer em mim?
Todas as coisas me causam o tempo inteiro.
Eu vim do mesmo lugar que você que não presta atenção.
A diferença é que eu não conseguir desligar a chave. E depois de um tempo, parei de tentar.
Todo aquele que assiste o noticiário inteiro sem se sentir mal acredita estar imunizado.
Alguma coisa na minha tireóide não vai bem.
Só mais um desses efeitos de estar neste mundo agora.
Me preocupo com a mesma desatenção ordinariamente paranóica com que vejo o mundo despencar.
Sozinhos num quarto de hotel estranho somos todos tão iguais.
Subscribe to:
Posts (Atom)