Monday, February 26

Boletins da cidade dos rios sufocados 6

Nestes dias em que vivemos, o surrealismo terrível se auto-engole, digere, defeca, torna a ingerir, continuando e continuando esse ciclo incestuoso de transformar absurdos em normalidade e não descansar dos dogmas mais estúpidos, gerando um monstro que assusta um monstro.
E eu tenho que ver vítimas esfoladas e parentes de vítimas esfoladas sorrindo com a boca amarela, pra baixo, e dizendo com a alma sem dentes “eu acredito que os meus filhos verão um país mais justo”. Tenho vontade de mastigar a televisão quando vejo uma coisa dessas, dou saltos pela sala, gritando como?, mas comooo?.
Eu sou cheia de momentos, pois é. Esse é um dos meus momentos “ser ingênuo” enfrentando o mundo. A mesma cena num momento cínico, que é o em voga no momento, dou umas três tragadinhas rápidas no cigarro, com um olho meio fechado, e gargalho como se fosse bonito ver alguém comer vidro.
E ainda penso “boa era a época em que a gente só comia merda”.
Hoje em dia a gente engole de tudo. Como hoje, o dia de hoje.
Com a mudança de horário, acordei uma hora mais cedo do que o necessário.Uma hora a menos de sono, uma hora a mais de dúvidas. Levantei, disposta, saí de casa ouvindo the cure, nunca se sabe qual a previsão do tempo aqui, protetor solar e guarda chuva, ratos, putas na padaria, policia montada, não encontrei a academia de defesa pessoal, olhei as pessoas e vi carnes que não se gostam, comprei um café com leite, “bem medido” gritou o turco pra garçonete, nem uma gota a mais ele quis dizer com isso, cheguei no trabalho, décimo primeiro andar, minha sala é sem janelas, duas luzes brancas, quatro paredes cor de creme, ar condicionado central psicopata, ou nos congela ou nos frita, sempre o mesmo ar requentado, me debati em burocracia, enterrei e desenterrei papéis, tomei café, pensei no blue brain, o blue brain pensou em mim, dei telefonemas, garanti pretensas ordens, repeti ofícios, cumprimentei, dei tchau, almocei, olhei as pessoas e vi nuvens de pontinhos que brincam de se odiar e se amar, pelo correio enviei um rosário para minha antiga benzedeira (pela minha sanidade ahahahaha), voltei no horário, recebi elogios (jamais muito efusivos), dei explicações, corrigi ofícios, me arrependi de ter levado esse trabalho tão longe, fui a sala da minha chefe (tem janelas, percebi que estava chovendo), respondi a perguntas inúteis sobre mim, declinei a sugestão-convite- pressão de seguir a escola de direito, voltei para a minha mesa, solicitei que os armários fossem trocados de lugar, pedi café, fiz cócegas imaginárias no blue brain, ele espirrou em mim, fiquei ouvindo smashing pumpkins num fone de ouvido só enquanto corrigia números. fui no andar de cima tirar xérox, troquei confissões numa sala e abafei uma fofoca na outra, porque faz parte do emprego, assinei errado o ponto de ontem, dividi um cigarro (o “fumadouro” tem janela, percebi que o céu entardecia azul), voltei pra minha sala, conferi minha conta não lá grande coisa, odiei todas as minhas escolhas até aqui, tive mais certeza ainda de que eu não poderia ter sido nenhuma outra pessoa do que tudo o que me aconteceu até aqui. Tudo o que me acontece. Saí já era de noitinha. Profundamente azul. E a minha cabeça explodindo de possibilidades e incapacidades. As vezes, eu penso que já tive muitas cabeças em alguma das minhas vidas, e nessa aqui, experimento uma sensação de membro amputado fantasma.
Estão todas as cabeças o tempo inteiro ao meu redor.
O difícil é saber se a minha coluna vertebral pode suportar.
Mas eu sou curiosa, e ainda não tenho um plano melhor do que continuar seguindo.
A gata, quando não dorme, faz acrobacias birutas pela casa. Gosto de pensar que ela é feliz assim.

No comments: