Boletins da cidade dos rios sufocados 3
A gata saiu do cio e eu voltei a ser espancada por ela pelo menos uma vez por dia e uma vez por noite. Fora isso, voltaram os giros enlouquecidos pela casa com as unhas em riste. E as funções de gaveta. De uns meses pra cá, todas as gavetas que ficam mais ou menos ao seu alcance são abertas e os seus conteúdos esvaziados. Me pergunto se ela está procurando ou escondendo alguma coisa. Ou talvez perseguindo. Desde criança acredito que existam por exemplo seres que vivam especificamente em degraus de escadas de madeira. Mas isso é praticamente um hobbie besta mantido como alimento de nostalgia.
Eu estou numa tpm que dura 3 dias como se fosse um deserto que vai me sufocar. Não me importo tanto com o inchaço, nem com a fome, nem com os peitos que doem, isso tudo que se foda. Meus hormônios, desequilibrados. Minhas visões se descomprometem. Se desamarram. Eu fico mais do que sensível. As vezes na verdade, eu fico até gelada. Durante esses dias, eu sinto, penso, existo, exerço pedaços especiais de todas e quaisquer existências randômicas ao redor o tempo inteiro. A freqüência é tanta e tão intensa, como fotografias passando rápidas para formar um filme, eu também não percebo, não tenho acesso aos quadros isolados. Fica só a sensação constante de confusão, de que eu, durante esses dias não consigo agir pra mim e por mim, fico existindo como uma passagem. Talvez seja isso mesmo e esses dias são como o imposto de renda, uma espécie de regra feudal; nesse período me vejo obrigada a transferir energias, do nada pro nada, uma ponte sem sentido. Quem sabe. Eu não sei. É até uma vergonha perceber e assumir o quão pouco eu sei sobre o que acontece comigo e em mim. Mas talvez isso só aconteça comigo por essa minha condição, digamos meio “eventualmente imbecil” frente a vida.
Isso e porque apesar de curiosa, eu sei que tem coisas que não vale a pena perguntar, querer saber.
As vezes não tomo banho todos os dias, hoje preciso, já fazem 3. Hoje eu quero. Eu sempre quero. Mas não ser a pessoa mais perfumada do mundo é uma ótima contribuição pra segurança urbana quando o centro fica vazio. “O centro”. “Os centros” são sempre lugares fodidos nos fins de semana. Pois é, estamos naquele ponto em que qualquer coisa tah valendo a pena pra uma mulher se proteger a noite, mas ainda não tão selvagem que os predadores não tenham cheiros de preferência. Se é que você me entende.
Preciso regar as solas dos meus pés, estão muito secas, essa semana aparei um pouco as arestas, as crostas, os rachados. Meus pés são minha metáfora. Disse a podóloga “aaaaaa, eles ficam assim cascudos, com calos e grossos porque a pele é muito sensível, literalmente seu pé ,ao andar, machuca”. E eu pensei torcendo o nariz “humpf, as vezes odeio um pouco a falta de comoção com que as pessoas simplórias entregam-nos as verdades”. Odeio o tempo inteiro o meu pedantismo. Mas tanto ele quanto o ódio fazem parte de todo o intrincado mecanismo crosta-protetor que eu tenho em torno de mim. Meus “calos existenciais” porque literalmente, viver, em mim, machuca. Eu não ligo, mas me cuido bastante. Até porque viver, assim como andar, é um troço que “apesar de tudo” eu gosto.
Porque eu gosto tanto tenho que viver pela metade.
De tão frágil fico dura.
Enigma binário ordinário. Me sinto uma prima mística do DOS.
Bom. Fora isso, na última semana o mundo começou a brincar seriamente com a idéia do fim. Vai ser o tempo de nos acostumarmos gradativamente com a catástrofe e a paranóia que não sentiremos dor verdadeira quando acabar. Parecerá só um por do sol um pouco mais esquisito do que os outros.
Há, nesse instante, sobre o nosso universo, na dimensão imediatamente seguinte, uma espinha de peixe cercada de estrelas, com dragões de todas as dinastias mastigando seus pescoços metálicos. Mas isso tem milhares maneiras de se contar.
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