boletins da cidade dos rios sufocados 5
eu sou um tipo de cachorro maldito que só compreende ordens cruelmente assinaladas
e ao mesmo tempo odeia ser mandado.
eu sou um tipo de cachorro maldito que só sabe ser gato. a gata, aliás, se parece cada dia mais com uma raposa. minha adorada e odiada raposinha branca.
a frase do dia é "quer que eu te bata com o universo?",
ou como tem dito o slogan do filme do cavaleiro fantasma, eu usarei minha maldição contra você. esse"você", dito seja, é uma entidade não identificável. o que não significa nem um pouco que Ela não exista.
veja bem, nós poderíamos existir sem Ela. mas só continuamos existindo até aqui por que Ela permitiu. as fraquezas, vcs sabem, são inventadas como marcas de chiclete.
todos os tipos de guloseimas.
mas ser forte e insistente compensa. talvez me mate, mas sempre compensará.
e depois, a alergia no corpo e as feridas nos pés já começam a sarar. eu faria de novo pelo dobro do preço.
há seis dias atrás, era carnaval.
não era grande coisa enquanto conjectura, mas eu pensei, de repente, que se eu "enxergo" mais do que “usualmente as pessoas praticam”, se eu percebo mais,
se a minha pele é capaz de sentir o que eu não conheço,
talvez, eu também possa aprender a ver.
ver, é quando voce tem consciência.
é quando voce aprende a compartilhar e convocar a realidade paralela.
ou seja, eu desejei ver, suspeitei que fosse possível, intui como começar
E acreditei que talvez por algum motivo eu esteja na cidade certa para começar a brincar disso.
só podia ser num deserto.
não é sempre num lugar onde vazios imperam que as coisas acontecem?
um vazio com cavalos dágua sem nome enterrados. um vazio que não sabe fazer noite, onde todas as putas são velhas e todas as travestis de primeira linha.
uma cidade que tem todas as igrejas com todos os tipos de vendilhões,
por onde o futuro passou brevemente e deixou pra trás.
Aqui, o futuro passou uma noite, trocou almas por promissórias de desejos, fez muitas contas, deixou muitas histórias mal contadas e visões distorcidas, e foi embora na manhã seguinte roubando todos os cinzeiros e fotos de infância.
No deserto, onde pra sobreviver voce acha beleza no que estiver ao alcance.
Pro bom e pro ruim.
De cada um. E fodendo com todos.
Há seis dias atrás, sentada na sala, olhei pra fora, escolhi uma janela qualquer, uma lá longe, no topo de um prédio que tem um terraço bonito pra pandorgas,
se ainda existisse uma,
e me apoderei da idéia daquele cômodo.
Consegui me concentrar porque era dia propício, varri rápido todos os outros pensamentos da minha cabeça, então os meus olhos já não piscavam nem por dentro nem por fora.
Ainda não sei como funciona, mas sei que desliguei a luz do quarto de um tetraplégico sem nunca ter estado lá.
Pode ser só fantasia e então eu sou a filha predileta do acaso.
O importante veio depois.
Quando eu era adolescente, batia punheta pensando em nada. No vazio. Sem nenhuma fantasia, nem lobo mau, nem chapeuzinho nem caçador encantado.
Eu vivo sozinha,
gosto de passar um dia inteiro sem dizer uma palavra as vezes.
Os vazios me compreendem. E eu entendo o que eles dizem.
Assim, em posse de todas as coordenadas concentradas no ponto do vazio,
como quem desiste de procurar uma essência e simplesmente se liberta de tudo,
tudo, o que nos constitui, nos segura, nos prende, eu tive.
O sonho dourado de qualquer iogue ou físico quântico. Eu vi a dança.
Eu percebi a dança.
Eu dancei o caos da menor partícula, a mais estúpida ínfima base de toda a energia,
A informação protegida,
A percepção pura dessa coisinha infinitamente minuscula que criou o tempo, o tamanho, todas as grandezas e pequinices, o fundo do que existe,
de ti em mim no porco no prazo na função nas esferas no que vai vir porque o que foi já foi.
Não tem mais como voltar do que eu vi.
Acho que algumas vezes eu tive uma certa esperança medíocre de que o momento de me tornar livre sem volta não viria. Que eu o deixaria passar. Mas não.
Eu fui atrás e da pior melhor maneira. Espiando sem ser convidada.
Enfim, no dia seguinte, acordei com alergia no corpo inteiro. Mais forte no couro cabeludo, e eu cocei com muito prazer.
Uma ferida no pé direito, e duas no pé esquerdo.
Mas acho que ninguém espia a matéria de graça.
Paguei moedas a três mendigos pra honrar pretos velhos e barqueiros.
As marcas estão sarando. E então eu vou de novo.
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